De acordo com Rafael Mafei, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), é errado rebaixar o comportamento do presidente Jair Bolsonaro a meros “maus modos”. Mafei usou sua conta no Twitter para discorrer sobre a posição do chefe da nação brasileira, que tem, repetidamente, incitado a opinião pública contra os demais poderes da República.
Para o professor, Bolsonaro tem sido reincidente no cometimento do crime de indignidade, desonra e quebra de decoro. Segundo ele, há uma resistência a encarar de frente o crime de indignidade, desonra e quebra de decoro porque ele não é tão fácil de se concretizar em exemplos teóricos. “Parece abstrato demais. Mas está na lei e é crime: ser de difícil teorização não nos desobriga de lhe dar significado”, ensina.
Rafael Mafei explica que as palavras e o comportamento de um presidente, em qualquer momento, e por qualquer meio (inclusive Twitter ou WhatsApp) são formas de exercício de poder, político e retórico. Ele influencia comportamentos reais de seguidores nas ruas e nas instituições.
“Quando Bolsonaro fala contra cientistas, ONGs, jornalistas, STF e Congresso, seus deputados, os PMs e militares de baixa patente que o têm como líder, seus seguidores difusos nas ruas, gente que aspira ascender no governo, todos, enfim, ouvem o seu chamado. E agem. Agem através de linchamentos virtuais, ofícios ameaçadores, retaliações administrativas, constrangimentos de toda sorte. Geram autocensura, agridem liberdades. Atiçam, nas instituições, a turba que quer mostrar serviço ao “mito!” Tudo incentivado pelo próprio Presidente”, explica.
Leia a thread do professor na íntegra
Sobre o vídeo compartilhado pelo presidente Jair Bolsonaro, algumas observações à luz do impeachment – seja da teoria, seja do nosso desenho para o instituto no Basil. O fio ficou longo, mas acho que o caso vale um desenvolvimento cuidadoso.
De cara, uma observação sobre reações à fala: acho um erro procurar para este caso um crime de responsabilidade à parte em lugar de enxergá-lo como mais uma ocorrência do crime que caracteriza a conduta de JB desde sempre: indignidade, desonra e quebra de decoro.
Há uma resistência a encarar de frente o crime de indignidade, desonra e quebra de decoro porque ele não é tão fácil de se concretizar em exemplos teóricos. Parece abstrato demais. Mas está na lei e é crime: ser de difícil teorização não nos desobriga de lhe dar significado.
Se o festival de indignidade política promovido por Jair Bolsonaro enquanto presidente servir de algo, é para dar substância a esse crime. Se a conduta de JB não carateriza quebra de decoro e indignidade presidencial, podemos riscar o crime da lei.
Impeachment lida com abusos de poder presidencial que (i) são perigosos para instituições democráticas e (ii) não podem ser eficazmente contidos por mecanismos ordinários de freios e contrapesos constitucionais.
As palavras e o comportamento de um presidente, em qualquer momento, e por qualquer meio (inclusive Twitter ou WhatsApp) são formas de exercício de poder, político e retórico. Ele influencia comportamentos reais de seguidores nas ruas e nas instituições.
Quando Bolsonaro fala contra cientistas, ONGs, jornalistas, STF e Congresso, seus deputados, os PMs e militares de baixa patente que o têm como líder, seus seguidores difusos nas ruas, gente que aspira ascender no governo, todos, enfim, ouvem o seu chamado. E agem.
Agem através de linchamentos virtuais, ofícios ameaçadores, retaliações administrativas, constrangimentos de toda sorte etc. Geram autocensura, agridem liberdades. Atiçam, nas instituições, a turba que quer mostrar serviço ao “mito!” Tudo incentivado pelo próprio Presidente.
Por isso a lei impõe limites àquilo que presidentes podem dizer: não pode utilizar seu direito ao discurso político e à liberdade para falar às suas bases, para incentivar comportamentos que possam constranger ou inviabilizar o funcionamento de instituições democráticas.
“Decoro” exprime justamente a ideia de um limite que o discurso presidencial não pode ultrapassar. Como o discurso presidencial é inerentemente uma forma de exercício de poder, a linha vermelha é cruzada quando o PR incita emparedamento de instituições e de seus membros.
Assim, o vídeo de ontem não é algo diferente do ataque à jornalista Patrícia Campos Mello, ao Conselho Federal da OAB, às ONGs, não difere do vídeo das hienas. É o mesmo crime em todos os casos: abuso de poder retórico e de liderança política para produzir pressão sobre instituições que “incomodam” JB.
Além da quebra de decoro, há a quebra de “dignidade”: violação de um valor inerente àquilo que se é (neste caso, presidente). O prestígio e a liderança inerentes à Presidência são indispensáveis em uma democracia funcional, e não podem ser vilipendiados impunemente.
Rebaixar a Presidência a um comportamento vil, indiferente a qualquer padrão de civilidade política, tem consequências de longo prazo *para a própria instituição da Presidência da República*. O jogo de freios e contrapesos não funciona sem uma Presidência apta a liderar.
Por tudo isso, é errado rebaixar o comportamento de JB a meros “maus modos”. Uma coisa é falar de boca cheia; outra é usar o peso e a importância incomparáveis do cargo para tentar constranger juízes, jornalistas, professores e parlamentares. Aí é crime de responsabilidade.
Ao lado disso, porém, há um juízo de conveniência que cabe ao Congresso fazer. Um presidente sabidamente criminoso pode ser poupado do impeachment se se avaliar que os traumas do afastamento serão grandes demais para serem suportados.
Mas esse juízo de prudência deve levar em conta todos os fatores, não apenas ganhos políticos/econômicos de curto prazo. Precisam ter clareza de que normalizar um Presidente que sobrevive de atacar as instituições é um enorme preço a ser pago, e essa conta um dia chega.
Se, como dizem, vingança é um prato que se come frio, o juízo histórico de responsabilidade política é prato que se come ainda + gelado. Só no futuro poderemos dizer se Rodrigo Maia e David Alcolumbre terão sido omissos em relação às incansáveis quebras de decoro de JB.