Fato marcante da história política recente do Brasil, o processo de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, que culminou com o afastamento definitivo da petista da presidência da República, voltou ao debate político esta semana, em virtude da fala do presidente Lula em evento na Argentina. O petista, que tomou posse no último dia 1º de janeiro para seu terceiro mandato à frente do executivo federal, disse que o impedimento da sua correligionária teria sido um “golpe de estado”.
“Vocês sabem que depois de um momento auspicioso no Brasil, quando governamos de 2003 a 2016, houve um golpe de Estado. Se derrubou a companheira Dilma Rousseff com um impeachment. A 1ª mulher eleita presidenta da República do Brasil”, declarou Lula.
A afirmação de Lula irritou boa parte dos atores políticos brasileiros e as críticas ao petista soaram fortes. Bolsonaristas, pegando carona no momento conturbado que vive o país, anunciaram que vão pedir o impeachment do atual presidente, sustentando que ele atentou contra as instituições ao afirmar que aquele processo, considerado legítimo pelo Congresso e Judiciário, teria sido um golpe de estado.
Juristas e pesquisadores divergem quanto à natureza daquele evento que ainda está marcado na memória do povo brasileiro. Uns acreditam que, dado o que se sucedeu desde o impeachment da presidente Dilma e o momento de grande polarização e tensão em que se encontra o país, seria impossível analisar aqueles acontecimentos à luz apenas da legalidade jurídico/política, sem se deixar levar pela paixão.
Letícia Kreuz, doutora e mestra em Direito do Estado pela UFPR e professora substituta de Teoria do Estado da UFMG, usou o Twitter para fazer uma análise muito pertinente sobre o debate “impeachment x golpe”. Segundo a especialista, enquanto discurso político, Lula acerta ao chamar aquele processo de golpe.
“Evidencia que Dilma foi vítima de ataque orquestrado por opositores que não conseguiram eleger presidente e armaram para usurpar o poder por outro meio que não as eleições. Politicamente, o termo golpe se encaixa perfeitamente”, avalia.
Kreuz explica, no entanto, que preferiu chamar o evento de “jogo duro constitucional” por entender que é uma expressão que condensa o véu legal, a polarização política, a sabotagem, a tomada de poder por vias escusas. Para Letícia Kreuz, “jogo duro constitucional” é um conceito que remete a práticas que, embora estejam acobertadas (ou pretensamente acobertadas) pela juridicidade, extrapolam limites constitucionais na sua aplicação. Ou seja, é como se fosse um “golpe constitucional institucionalizado”.
Na sua análise, a doutora explica que o “jogo duro constitucional”, que Lula preferiu chamar de golpe, é uma arma política contra um oponente. Seria, segundo ela, uma prática evidenciada quando grupos políticos antagônicos passam a se valer de qualquer meio necessário para impedir que o outro vença ou que se mantenha no poder. “A atuação política é ‘marcada’ por uma pretensa ‘defesa’ dos institutos jurídicos legais”, explica.
A professora lembra, também, que o processo de impedimento de Dilma Rousseff começou com Aécio Neves contestando o resultado eleitoral de 2014 e se consolida quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, aceita a denúncia contra Dilma, motivado pelo fato de ter ficado sabendo que o PT, partido de Dilma, votaria favoravelmente à abertura de processo contra ele na Comissão de Ética da Câmara. “Instaurou-se aí a imagem de que Dilma não teria governabilidade, então não teria como concluir um mandato sem gerar caos ao país”, diz Letícia.
Daí, segundo a análise da doutora Letícia Kreuz, Dilma foi sabotada pelo Congresso para sofrer o impeachment. “Já não importava mais se havia crime de responsabilidade ou não. As justificativas de votos dos parlamentares na sessão de votação da admissibilidade do processo de impeachment na Câmara evidenciam isso”, sustenta, e mostra pesquisa que aponta que as tais “pedaladas fiscais”, que seriam a motivação jurídica para o processo de impeachment, foram apenas a 16ª razão mais citada pelos parlamentares.
Kreuz ensina, ainda, que a legislação brasileira sobre impeachment, assim como o regramento constitucional do instituto, não vincula o voto do deputado ou senador ao embasamento jurídico, mas que deveria haver um mínimo de base jurídica para ser possível condenar um presidente por crime político. “Houve um processo, houve denúncia, oportunidade de defesa, oitiva de testemunhas, juntada de provas. Houve, por assim dizer, um véu de juridicidade. Esse simulacro de devido processo legal sustenta discursos como o do ex-presidente Temer, de que não houve golpe”, pontua.